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domingo, março 11, 2012

Falta o arrastar dos chinelos

Ele reencarnou aos 11 de março de 1934. Seu novo nome, na nova existência: CLÓVIS SOARES FERREIRA LINS e foi uma das figuras mais importantes na minha vida e de outras pessoas que com ele conviveram, em 76 anos de existência terrena.


Há 60 dias não temos mais o arrastar dos chinelos no meio da casa, marca registrada de quem passou dos setenta anos e, como ele mesmo dizia “tô ficando véio!”.

Este artigo é a minha forma de homenagear meu velho pai e, mal começo a digitar estas linhas, as lágrimas insistem em saltar aos olhos!

Não conheço uma pessoa que tenha convivido com ele, que não sinta sua falta, de parentes, amigos a ex-patrões!

Sabe aquela criatura que tira do seu próprio prato ou dá o seu prato inteiro se você pedisse? Pois é, ele era assim! Se eu, minha esposa, o neto, as netas, os netos e sobrinhos “agregados” pedissem, ele cederia de bom grado e ainda diria “não estou com fome!”

Quantas vezes minha esposa dizia a ele: “tem tal comida no fogão!” O que ele fazia? Comia um pouco e deixava para a gente!

Seu time do coração? Santa Cruz, time que a neta mais nova passou a torcer, o que fazia seu orgulho e alegria! Mas e a outra neta? A outra neta é torcedora do arquirrival Sport! Mas o amor do Vovô Clóvis era grande demais para isso fazer alguma diferença, pois não é que comprava coisas do Sport para a neta?!

Houve uma época, ainda lembro bem, eu era garoto e, ele e minha mãe passaram a maior dificuldade, chegando a ficar quase a pão e água. E eu? Mandaram-me para a casa de um tio, para não sofrer com aquela situação.

Nos últimos anos, seu prazer era levar meu almoço. Reclamava quando entrava de férias ou de recesso, ou então, quando eu dizia a ele que “hoje não vai almoço, pois vou comprar por lá mesmo.” Ah, ele não gostava, não.

Não foi um homem rico que pudesse dar presentes caros ou outros supérfluos, mas nunca tive um único motivo de me envergonhar. Aliás, eu bem que poderia ser como ele, um verdadeiro poço de paciência! Sempre os outros na frente, pois ele gostava de ser sempre o último.

Seu refúgio? O lar, de onde saía para levar meu almoço e comprar o seu jornal de segunda-feira.

Conforme me vem as lembranças, vou narrando alguns “causos” [1] vivenciados com meu pai:

CAUSO 01 – SUPERMAN, O FILME
Lá estava eu, no antigo Cine Jardim, hoje sede do SEBRAE, assistindo Superman, o filme. Pergunto ao meu pai:
- Painho, o Senhor gostaria de ser o “superhomi”, assim?
- Eu, não! – respondeu.
- E por que não? – voltei a perguntar.
- Oxe, Claudinho - sempre me chamou assim! – e eu lá quero ser imortal!?
Bem que poderia ser...

CAUSO 02 – O CAWBOY E O CAVALO
Ele trabalhava numa padaria e chegava morto de cansado. Deitava na sua cama, enquanto minha mãe assistia a novela na casa da vizinha, pois, nessa época não tínhamos TV.
Lá estava ele, deitado, em decúbito ventral, ou como dizemos em nordestinês, de bucho mesmo. Eu pulava nas suas costas, segurava pela gola da camisa e começava a pular, fazendo-o de cavalo.
O que ele fazia, cansado, doido pra dormir? Dava risadas! Eita, meu velho!

CAUSO 03 – FINALMENTE, A TV
Um belo dia, meu pai me chamou para ir com ele à rua. Somente ele e eu e todo cheio de segredos (não era pra falar pra minha mãe)! Hum, que estranho...
Chegamos de frente a uma antiga loja da cidade e entramos. Ele começou a olhar os televisores, em preto e branco, claro e, me perguntou:
- O que você acha?
- Acho de quê?
- Qual a melhor televisão? – retrucou ele.
Eu já estava com o coração aos saltos e, pensei: “Painho tá louco! Vai comprar uma TV!”
Ele olhou, olhou e escolheu uma TV e... comprou em 14 prestações semanais de 1.400,00 cruzeiros! Ainda lembro o dia!
Quem chamou ele de doido foi minha mãe, quando a TV chegou.
Assistimos aquela seleção mágica de 1982 pela nossa TV, em preto e branco!

CAUSO 04 – CARREGANDO ÁGUA
Eu tinha 3 para 4 anos, se bem me lembro e, na casa onde morávamos, não tinha água encanada. Meu pai tinha de pegar em latas. E eu, pequeno ia junto, “ajudando” o pobre coitado. Ele não teve dúvidas: pegou duas latinhas de leite, pregou um pauzinho em cada uma e eu ganhei minhas latinhas de carregar água junto com ele.
Essa lembrança é tão nítida, que me lembro até do seu sorriso e o da minha mãe, me vendo com aquelas latinhas “pesadas”.

CAUSO 05 – VISITANDO OS PARENTES DISTANTES
Era raro meu pai viajar, principalmente depois que minha mãe desencarnou.
Um dia, meu tio o convidou para visitar os irmãos e sobrinhos na cidade de Palmares.
Quando cheguei do trabalho, ele estava conversando com minha esposa e, depois, ele me contou os detalhes: ele não queria ir, porque, quem levaria meu almoço? E a neta? Quem ajudaria a buscar no colégio (nessa época, só tínhamos Larissa).
Eu disse a ele: vá visitar o pessoal de Palmares.
Bom, na segunda-feira, pela manhã, meu tio veio pegá-lo, depois que eu saí para o trabalho. Quando cheguei, algo em torno de 19:00h meu pai já estava em casa.
Indaguei à minha esposa o que tinha acontecido. “Painho não viajou?” Sim, havia viajado, mas já retornara!
Depois ele me disse que meu tio estava com um pouco de pressa pra voltar!
Um dia meu tio me disse a outra versão dos fatos: chegando em Palmares, foram visitar os parentes e, sempre que chegavam em alguma casa, meu pai dizia a meu tio:
- Valdemir, num apressando não viu, mas quando quiser voltar, eu já pronto!
Isso se repetiu em todas as visitas, até que meu tio disse: então vamos embora!
Agora, avalie se ele estivesse com pressa?

CAUSO 06 – SEU PRIMEIRO NETO
Meu filho mais velho, Thiago, hoje com 20 anos, quando era pequeno, era outro xodó do vovô Clóvis!
Todo fim de semana eu pegava ele para ficarmos juntos e era uma alegria para meu pai, ter o seu netinho em casa.
Lógico que, quando eu chegava com ele, meu pai tinha sempre algum brinquedinho para dar... coisas de avô...

CAUSO 07 – A ESTRELA QUE CAIU DO CÉU
Um dia eu achei que uma estrela havia caído do céu, bem no meio da rua onde morava. Eu olhava da janela e via aquela “coisa” brilhando! Só podia ser uma estrela!
E fui correndo contar para meu pai.
Na hora ele não me disse que não podia ser uma estrela, mas veio olhar comigo e me disse:
- É a luz do poste no calçamento, Claudinho...



[1] - os causos não estão em ordem cronológica, porque vou digitando à media que me lembro.

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